Sexta-feira,
17 de Julho passado. Indo em direção à minha casa eu sinto um problema mecânico
ou elétrico no meu irmãozinho, o carro que tem me ajudado, um corajoso e
destemido Fusca.
Consigo
levá-lo até a uma oficina próxima, não muito distante do Museu de História
Natural. Os proprietários, amigos meus, são especialistas em carburadores. Pedi
para fazer a limpeza da peça, imaginando que o problema seria aquele. Eu
poderia aguardar durante cerca de duas horas dentro da oficina. Mas, armado com
minha máscara, pois estamos em uma pandemia de um vírus muito contagioso, resolvi,
na verdade, caminhar pelas ruas e ruelas da região e absorver um pouco de
vitamina D com a energia que o sol nos presenteava.
Caminhando
e meditando, observei várias pessoas que, seja pelo desleixo, negacionismo ou
ignorância, estavam sem máscaras ou com elas abaixo do nariz ou do queixo. É curioso e
intrigante como isso ocorre com muita frequência aqui no Brasil. E me lembrei
de quatro países de culturas distintas, localizados em continentes diferentes
do planeta, que são Uruguai, Vietnã, Nova Zelândia e Alemanha, que têm
combatido o coronavírus de forma muito eficaz. Porque seria? Será que teria
relação com o respeito entre as pessoas em suas culturas?
No
retorno à oficina ainda passo pelo estádio Independência, do América. Gosto
desse clube, que era o do coração do meu pai. Não acompanho tanto futebol nos
últimos anos, mas não pude me esquecer de um amigo, Eduardo, cuja família é
americana. Tiro uma foto para enviar-lhe. Mas não remeti no mesmo dia,
pois recebi a triste notícia do falecimento de sua mãe. No antigo estádio
Independência, meu pai assistiu à histórica partida em que a inexpressiva
seleção dos Estados Unidos derrotou a da Inglaterra por 1 x 0, pela Copa do
Mundo de 1950.
Roque
Máspoli foi goleiro da seleção uruguaia. No final dessa mesma Copa, ele foi um
dos responsáveis pela trágica derrota brasileira, em pleno Maracanã mais cheio
impossível, em uma partida que já está virando lenda. Durante minha vida eu vi
várias fotos de Máspoli abraçando, de forma muito cavalheira, os jogadores
brasileiros em prantos. Ele certamente comemorou a vitória de sua seleção. Mas,
não se esqueceu dos adversários. Uma vez eu li que ele foi de jogador em
jogador brasileiro, levando seu carinho.
Ao
chegar à oficina e testar o carro, notei que o problema não havia sido
corrigido. Um dos donos desta, sempre muito gentil, ofereceu tentar encontrar a
solução. Mas, para isso, o garoto teria que ficar lá até o princípio da semana
seguinte.
Volto
a pé para minha casa. Já havia caminhado muito nas horas anteriores e tive que
encarar mais uns quilômetros. Sou um andarilho, mas nessa pandemia com
certeza reduzi o ritmo, pois não estamos de férias. Não é responsável estar
toda hora na rua. E o caminho foi longo. Ao chegar em uma avenida que une Belo
Horizonte à divisa com Sabará, recebo um conforto visual. Ela é arborizada. E
me lembrei da meditação caminhando que me remete a um gentil mestre budista,
que muito me ensinou e ajudou, Thich Nhat Hahn, autor de vários livros, um
deles chamado O Príncipe Dragão, sobre estórias e lendas do Vietnã. Para falar
um pouco dele gostaria de utilizar um trecho do prefácio da tradução em
português de outro livro de sua autoria, ‘Para Viver Em Paz – O Milagre da Mente
Alerta’. A atriz brasileira Odette Lara realizou a tradução e escreveu o
prefácio. Como segue.
“No
dia anterior à partida de Thich Nhat Hanh foi programado para sua despedida um
piquenique no alto de uma montanha. Thich Nhat Hanh foi convidado a caminhar à
frente e, sendo a trilha muito estreita, tínhamos que caminhar de forma indiana.
Tão lentos eram seus passos que uma certa inquietação e impaciência se instalou
em cada um nós. Mas como, por cortesia, não poderíamos mudar a situação, algo
interessante começou a acontecer. Aquele ritmo fazia nossa atenção se voltar
para os detalhes da vegetação por que passávamos, para as múltiplas formas das
árvores, folhagens e flores, para suas infinitas variações de cores. Na verdade
eu estava, e creio que todos os demais também, pela primeira vez, apreciando em
totalidade a beleza daquela trilha, forma natural de ver de Thich Nhat Hanh.”
No
meio do caminho, observando as árvores, folhagens e flores e suas cores, eu me
lembrei de algo que uma pessoa muito querida me havia enviado. Era uma música
de cerca de cinco minutos. Ela me disse que amava os dois primeiros minutos.
Mas, logo que uma voz gutural começava, ela tinha que desligar a música. Tinha
razão. A música ia bem até aquele ponto; depois, desandava. Eu pensei. Será que
dá pra fazer uma magicazinha, editar a música e criar um áudio só para ela?
A contagiante energia positiva dessa pessoa me lembra a jovem Jacinda Ardern, a atual primeira ministra da Nova Zelândia. Muito dinâmica
e alegre, demonstra enorme inteligência e competência para resolver os problemas de seu país,
tratando a pandemia com muita seriedade, para citar apenas um exemplo. Meses
atrás eu brinquei com uma amiga, ao falar de Jacinda: ‘Eu me casaria com essa
moça! Pena que está distante e já é casada!’. Irritada e com o ego inchado,
essa minha amiga me perguntou: ‘Por que não comigo?’. Eu só sorri. Qualquer
coisa que falasse só pioraria o assunto.
Durante
a semana seguinte, os donos da oficina tentaram de diversas formas solucionar o
problema, mas sem sucesso. Na quarta-feira volto ao local. No caminho, a pé,
muitos pensamentos e insights vêm à
minha mente. Vou guardá-los para outras crônicas, pois esta já será um pouco
longa. Chegando ao destino, a mim foi relatado que uma peça fora substituída. Mas, ao ligar o veículo, percebi que ele não estava bem. Desde que venho
conduzindo esse carrinho, ou o contrário, sinto o coração dele ao apertar o
acelerador. É necessário escutar um certo som, que meu pai me ensinou qual era
quando eu tinha uns sete, oito anos. Esse ‘som’ já não estava presente há
alguns meses.
Consigo,
com muita dificuldade, levar o carro de volta para minha casa. No dia seguinte,
peço a um amigo, Gilmar, que tem uma oficina perto de minha
casa, para me ajudar. Eu estava verdadeiramente triste com o estado do mocinho,
pois algo me liga a ele, como eletromagnetismo. Se ele não está bem, eu também
sofro e vice-versa. Com muito cuidado, perícia, atenção e também coração, no
sábado, com a porta fechada de sua oficina, Gilmar cria uma peça de duas que
existiam (da que fora substituída e da que fora colocada) e devolve a saúde ao
garoto.
Eu
estava trocando algumas mensagens com a moça da música que eu comentei acima
quando recebo uma ligação do Gilmar para buscar o veículo. Peço licença, me
dirijo à oficina. Lá, eu ligo o carro, sinto e escuto aquele mesmo barulho da
infância. E me recordo de Angela Merkel, Chanceler da Alemanha, chamada de
‘Líder do Mundo Livre’, formada em Física, sempre precisa e equilibrada em suas
decisões e que vem tendo atitudes sérias e corajosas ao longo dos anos, inclusive durante essa pandemia. Não é
qualquer um que tem a capacidade e a precisão para realizar tal conserto
naquele veículo alemão, projetado para resistir e ser amigo de quem é amigo
dele.
Sendo
de gerações próximas e, com a oficina vazia, tive o prazer de, pela primeira vez
em muito tempo, conversar com Gilmar por cerca de duas horas, que passaram sem
que tivéssemos percebido, trocando experiências e falando de sua netinha,
Antonella, nascida em 23 de julho, dois dias antes. Despeço e volto para minha casa, com muita
alegria, tanto pelo bom estado do meu irmãozinho, quanto pela ótima conversa
que tivemos.
E
o áudio que eu queria editar?
Fiz
no mesmo dia que voltei a pé para casa, deixando o carro na primeira oficina.
Sempre me lembro que, para algumas produções, o conhecimento de orquestração
ajuda muito, pois tenho que encontrar pontos corretos na música onde realizar
os cortes, como fazer os ‘encontros’ e demais detalhes. Quando se faz com um
ouvido não treinado sai algo Frankenstein. Mas é preciso colocar o coração ali
também, senão fica tudo muito técnico e frio.
E
envio para a moça. Ela me escreve, com letras grandes: "Não acreditei!" E
complementa com algo como: ‘Deveria ter sido filmada a cena com minha reação!’.
Ela me disse que era uma coisa que ela queria muito que tivesse sido feita.
Naquele
dia fiquei muito feliz, apesar de preocupado com o carro que ficara internado. Com
a reação e as palavras dela, eu me senti, mesmo guardadas as devidas proporções,
cavalheiro e carinhoso como Máspoli, gentil e observador como Thich Nhat Hanh e
preciso como Angela Merkel.
E
como estava a misteriosa e linda (em todos os sentidos) moça a quem dei o
singelo presente?
Não
seria necessário filmar! Fisicamente distante... como Jacinda Ardener. Mas, muito mais
alegre e viva, iluminando meu ser ao me transmitir, de onde estava, uma
incrível luz em toda sua plenitude!