A maior parte dos brasileiros conhece a música de Cazuza:
"Meus heróis morreram de overdose,
meus inimigos estão no poder
Ideologia, eu quero uma para viver!"
Bem, eu não quero uma para viver.
A letra de Cazuza, quase um grito desesperado, em momento de completa desilusão, é, para mim, um raro sinal de discernimento. Caso alguém consiga atingir esse ponto, pode-se dizer que muito de seu sofrimento é extinto.
Batizado em duas tradições cristãs, a católica e a presbiteriana, vivenciei o culto ao dualismo, à 'luta entre o bem e o mal', entre Deus e o diabo. E, ao mesmo tempo, estudava em uma escola cuja tradição filosófica não possuía as mesmas crenças cristãs e, até como uma atitude de auto preservação, criava o seu dualismo ao se contrapor ao cristianismo.
E ainda por cima, meus pais, respeitosos para com todas as crenças, deixaram que meu irmão e eu visitássemos um centro espírita, a convite de um casal amigo, para receber 'passes', possivelmente por estarmos meio 'endiabrados' em casa. Como conhecia meu pais, sabia e sei que a opção do exorcismo estava, obviamente, descartada.
E para completar a confusão, mesmo não sendo descendentes de alguma família do oriente médio, éramos sócios do Clube Libanês, em uma época em que praticamente somente os libaneses frequentavam o clube, que era uma mistura de cristãos e muçulmanos.
Após essa rica experiência em minha infância, venho estudando, com respeito e curiosidade, as várias manifestações religiosas que, ao longo dos séculos, vem sendo praticadas pela humanidade.
Ao estudar o budismo, não como religião, mas como prática de vida, descobri a minha falta de fé em qualquer credo e, o mais incrível e paradoxo, a minha falta de fé na própria descrença, fruto da curiosidade e do aprendizado que tive e tenho com os mais diversos textos religiosos. E as práticas budistas ainda me fizeram o favor de aumentar meu respeito por outros pontos de vista. Bem, pelos que não são nocivos aos seres vivos.
Mas, por que uso o exemplo da religião em um momento de ebulição política em nosso país?
Exatamente porque eu só consigo ter como referência as diversas desavenças religiosas, que também são frequentes no noticiário, para escrever sobre o dualismo exacerbado que vejo nas redes sociais e nas ruas, principalmente.
Ao abrir minha linha do tempo no Facebook, encontro alguns absurdos, como a defesa cega, por alguns poucos, do retorno de um governo militar ditatorial, como solução para os 'desmandos de nosso país'. Figuras patéticas e caricatas, como a do Sr. Bolsonaro, habitam o ideal de jovens, bem como também de pessoas de meia idade e velhos. A memória fraca, o pouco estudo histórico e, em alguns casos, um natural caráter agressivo e até desrespeito pelo sofrimento alheio, levam algumas pessoas a defenderem a violência e a tortura policial e a intervenção militar de linha dura.
Encontro, em número bem maior, defensores do governo Dilma e do líder máximo do PT, Lula. Esses apoiadores, que se chamam de 'esquerda', demonstram um comportamento fanático e cego, próximo ao fundamentalismo de seitas religiosas. Ao invés de se posicionarem a favor da permanência do governo por eles apoiado, porém criticando-o pelos mais que visíveis erros de conduta, corrupção, gastos excessivos com viagens de oba-oba, dentre inúmeros outros pontos negativos, muitas vezes inerentes à nossa classe política, apenas se fecham em sua defesa, muitas vezes agressiva. Raras são as críticas vindos dos petistas em relação aos seus líderes.
Tal exagero faz com que eu me lembre de Jim Jones, líder do culto 'Templo dos Povos', famoso devido ao suicídio / assassinato em massa, em novembro de 1978, de 918 dos seus membros em Jonestown, Guiana, além do assassinato do congressista Leo Ryan e de quatro mortes adicionais em Georgetown, capital guianense.
Tudo vale em função do projeto de governo. Roubos, má administração, políticos intoxicados pelo poder, desviando-se da ´ética' do partido, não são motivos suficientes para a existência de uma, pelos menos uma só crítica ao governo petista.
Também encontro, em número igual ou superior, 'posts' com as críticas dos detratores do governo, muitas vezes tão agressivos quanto os defensores de uma ditadura militar de linha dura, mas nitidamente menos radicais. Para estes e esses, tenho um comentário: O PT não caiu de paraquedas!
Leciono idiomas há 27 anos. Inglês, espanhol e francês. Mas se eu não lecionasse inglês, estaria com dificuldades, pela natural menor procura pelos outros idiomas. Caminhe pela cidade e verifique quantas escolas há de ensino de inglês e quantas há dos outros idiomas. Um produto, partido político ou qualquer outra coisa, existe porque há procura.
Daí meu comentário. Por que o movimento 'PT' cresceu no Brasil? É porque nele havia e há quadros políticos de renomada capacidade? Sinceramente, não acho. Será porque, no momento de sua criação, o mundo ainda vivia sob o dualismo americano-soviético e o PT seria um partido que tenderia para o lado comunista? Bem, essa até poderia ser uma explicação, mas não para o crescimento do partido e sim para sua criação, pois seus fundadores eram os chamados 'intelectuais de esquerda', ligados aos movimentos comunistas, soviéticos ou maoistas, que, para mim, não passam de 'comunistas caviar'. Pessoas normalmente de classe média ou rica, muitos vivendo de forma aristocrática e que jamais gostariam de perder seus privilégios. O modo de vida dispendioso normalmente não acompanha o discurso.
O PT cresceu pois nosso sistema atual de votação é baseado no sufrágio universal, no qual os adolescentes acima de 16 anos têm direito ao voto, sem distinção de etnia, sexo, crença ou classe social. Desprezados, esquecidos, esfomeados e sem qualquer esperança, pobres e miseráveis, se livrando do antigo coronelismo brasileiro, se juntaram à tradicional, porém pequena, militância petista, e conseguiram eleger, pouco a pouco, vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais, governadores, senadores e presidentes.
Por populismo ou solidariedade, ou uma mistura dos dois, e me considero incapaz de julgar a proporção da verdadeira intenção dos programas sociais, o PT conseguiu levar comida a lares que jamais tiveram qualquer assistência por parte dos governos anteriores. Só sabe o que é fome na vida quem sofre ou já sofreu por falta de comida. Felizmente, não é meu caso.
Mas tais políticas dependem de dinheiro e de uma administração enxuta, com seriedade para com as contas públicas. Infelizmente, essas não são, historicamente, características de governos de 'esquerda'. O PT se beneficiou de um período da história brasileira em que exportamos de forma espetacular para o voraz consumo capitalista-comunista chinês. O dinheiro entrou, foi usado sem controle e, quando secou, o buraco estava fundo demais.
E fica a observação: Caso não se deseje que uma administração nociva como a petista, de aparelhamento de estado, gastos desordenados e populismo retorne ao nosso país, que passemos a pensar nos miseráveis que ainda habitam as nossas regiões pobres. Mas, como disse o senador Cristóvam Buarque, criador do Bolsa Escola, depois modificado e renomeado como Bolsa Família: 'No princípio do Bolsa Escola, no governo FHC, a família dizia que ganhava a bolsa, pois seu filho ia à escola. Hoje diz que recebe a bolsa, pois é pobre!' E o senador completa: 'Caso se interrompesse o Bolsa Família hoje, isso seria uma tragédia. Mas se, em 20 anos, o Bolsa Família continuar como está, também será uma tragédia!'
Ideologia é, como o próprio nome indica, um conjunto de ideias, de pensamentos, de doutrinas ou de visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo, orientado para suas ações sociais e, principalmente, políticas.
É como se alguém pegasse uma tesoura de conceitos, cortasse um pedaço com alguns deles e isso se tornasse a verdade absoluta sobre algum assunto.
Tenho sido um observador dos movimentos da política e um crítico do governo que acaba de dar seu adeus, temporário ou não. Mas, nesse processo, não me privo de criticar políticos nos quais votei ou não e que pertencem aos mais variados partidos. Por isso, não sem dificuldade, busco fugir dos fixos e limitados sistemas de ideias que, para mim, significam um cárcere. Mas faço isso mantendo-me respeitoso para com o bem estar público, repudiando os preconceitos e os fundamentalismos e mantendo-me aberto ao diálogo.
Para concluir, gostaria de ilustrar o texto com o riquíssimo personagem Spock, criado para o seriado de televisão Jornada nas Estrelas, de 1966. Em cena do filme Star Trek, de 2009, contracenam o jovem e o velho Spock. A evolução do personagem, inicialmente preso à sua filosofia de comportamento, que chamava de 'lógica', fez com que, nessa cena final, o velho Spock desse um conselho para o jovem Spock: 'Spock, nesse caso faça um favor a si mesmo: deixe a lógica de lado. Faça o que parece ser certo', ou 'o que você sente ser o certo'.
Que o universo nos abençoe e possamos sair dessa situação com serenidade e diálogo.