domingo, 25 de setembro de 2016

Domando Os 'Dois' Dragões Dentro de Nós

Caros amigos,
Uma vez um conhecido me disse que dentro de nós há dois dragões, um mau e um bom. E ele continuou a 'estória', dizendo que sobrevive o que recebe mais alimento.
Porém, creio ser esta uma visão muito pobre da realidade como-ela-é, na prática, no nosso dia-a-dia.
Em 6 de Outubro de 1966 foi ao ar, pela primeira vez, o 5º episódio da primeira temporada da série Jornada nas Estrelas, com o título de 'O Inimigo Interior'. Por um defeito no aparelho de teletransporte, duas versões do personagem capitão Kirk foram transportadas de um planeta para a nave. Uma delas era totalmente boa e a outra era totalmente má. Para melhorar o episódio, o transporte da segunda versão do capitão foi automático, sem testemunhas.
Para encurtar a 'estória' e não cansá-los muito, no final das contas o 'mau' apareceu, em virtude de seu comportamento excessivamente agressivo e descontrolado. Mas o 'bom' também tinha problemas, pois não conseguia tomar decisões, era muito fraco.
Então, digo-lhes que somente com o equilíbrio, dentro de nós, do que chamamos de 'bom' e 'mau', é possível o controle de nossa mente, escapando do mundo das ilusões e libertando-a do devastador dualismo.
Em outubro de 2005 tive a oportunidade de assistir à palestra de Saikawa Roshi, Superior Geral da Escola Soto Zen Budista para a América do Sul. Fui solicitado a transcrever o áudio da palestra, para oferecê-la a todos os praticantes desta tradição budista no Brasil.
O texto tem algumas citações da religião budista, principalmente quando lembra passagens da vida do Buda histórico. Mas o importante mesmo são os ensinamentos que estão ali, de uma forma simples e profunda.
E ao se aproximar a data da palestra, realizada 11 anos atrás, gostaria de publicá-la aqui.
Gostaria também de agradecer ao meu amigo Willer Siqueira que, na época, leu o texto traduzido e acrescentou alguns comentários importantes para a melhor compreensão do mesmo. Seus comentários são precedidos de seu nome.
Que tenham uma boa semana!
Ernesto
PALESTRA
Como conhecemos, o Budismo começou com Shakyamuni Budha, a cerca de 2.500 anos.
Quando ele começou a praticar, para solucionar o problema, ele começou a solucioná-lo na mente.
A maioria de nós, para solucionar os problemas do dia a dia, pensa, usa o cérebro e soluciona os problemas. Shakyamuni Budha também tentou solucionar os problemas mentalmente.
Mas o melhor caminho para solucionar o problema do ‘eu’ não é solucioná-lo mentalmente. É claro que a forma correta de solucionar problemas de ciência, matemática, filosofia, é usando a atividade mental. Mas sobre o problema do ‘eu’ esta não é forma correta Ele não percebeu isso. E levou seis anos, mesmo para Shakyamuni Budha.
Atividade mental precisa de linguagem e a linguagem contém palavras e palavras representam dualismo. As palavras precisam de: isto ou aquilo, direita ou esquerda, para cima ou para baixo, do lado de dentro ou do lado de fora, eu ou os outros, parar ou ir, sujeito ou objeto. Então as pessoas não duvidam a respeito da linguagem, pois quando uma criança nasce e cresce, o que esta criança aprende é este dualismo. Então, o que os seres humanos vêm fazendo por milhares de anos é transmitir este dualismo para a criança. Quando a criança se torna adulta, ela nunca duvidará do que escuta. Mas, esta idéia, ‘direita e esquerda’, ‘para cima e para baixo’, ‘bom e ruim’, é ilusão. É usada como uma ferramenta pela atividade mental. Por exemplo, se eu disser que este é o ‘lado direito’, este é o ‘lado esquerdo’ para vocês. Se eu disser que ‘para cima’ está nesta direção (apontando do dedo para cima), todos neste quarto irão concordar que ‘para cima’ está nesta direção. Mas esta direção é ‘para baixo’ para os japoneses que vivem do outro lado do mundo. E todos os seres humanos concordarão que o leste é para este lado e, de um outro lugar, leste é para a outra direção.
[Neste momento, o Reverendo Saikawa se levanta e explica o dualismo no quadro, desenhando um globo.] E diz:
A Terra, para os brasileiros, está nesta direção. Ao mesmo tempo, para os japoneses, está na outra direção.
[Depois ele desenha vária setas saindo de várias partes do globo em direção ao espaço.] Ele diz:
Há somente ‘para cima’, não há para baixo. Então, mesmo ‘para cima’ não existe. ‘Para cima’ precisa de ‘para baixo’. Ideias opostas. Para ‘para cima’, o ‘para baixo’ é necessário. Para ‘a direita’, ‘a esquerda’ é necessária. Para ‘o bem’, ‘o mal’ é necessário. (Ao tomar água) Se eu disser que esta água é fria, dentro de mim ela está quente. ‘O bem’ e o ‘O mal’ também são o mesmo. As coisas que são boas para o presidente Bush são ruins para (Saddam) Hussein. São somente ideias e a língua é condicionante. Ilusoriamente criada no cérebro. Então, originalmente, nada existe, não há ‘para cima / para baixo’, ‘direita / esquerda’, ‘bem / mal’. Mas as pessoas pensarão: ‘do lado de dentro’ e ‘do lado de fora’ existem. O ‘eu’ e os outros existem. É muito difícil descobrir. Isto também é ilusão no cérebro.
Shakyamuni Budha tentou encontrar o verdadeiro ‘eu’ no zazen. Na última vez ele determinou que, até atingir a iluminação, ele não se levantaria. Sob a árvore bodhi, no sétimo dia, ele se tornou um só com a estrela que atingiu seus olhos. Ele, no zazen, se esqueceu até mesmo de que estava lá, ele se esqueceu que estava praticando zazen, totalmente concentrado em si mesmo, ele se aprofundou cada vez mais e esqueceu-se de si mesmo. No oitavo dia, uma estrela da manhã veio à sua vista, embaixo. E a luz da estrela da manhã atingiu seus olhos. Então ele percebeu a unidade do ‘eu’ e dos outros, ‘sujeito / objeto’, ‘do lado de dentro’ / ‘do lado de fora’.
Nosso corpo, dos pés à cabeça, é feito de olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo e mente. É óbvio que os olhos enxergam coisas, os ouvidos escutam sons, o nariz cheira, a língua sente, o corpo sente se está quente ou frio e a mente pensa [Willer: o sentido é: a mente gera formações mentais].
Shakiamuni Budha alcançou o ponto através dos olhos. Um outro monge, Dogen, alcançou o ponto através dos ouvidos. Um outro monge, através do cheio das flores. Um outro, através do sabor do chá. Eles realmente compreenderam, eles realmente alcançaram a unidade com o ‘sujeito / objeto’.
[Neste momento o Rev. Saikawa bate na mesa com a madeira, e pergunta:] Onde está este som?”. [Bate e pergunta novamente:] Onde está este som? Aqui? [E responde:] Não. Em vocês. Então vocês podem escutar.
[O Rev. Saikawa faz outras perguntas:] Onde está o cheiro deste incenso? Este cheiro está na fumaça do incenso? [E responde:] Não. Em vocês.
O gosto do chá não está no chá. Quente e frio não estão nas coisas que estão aqui. Se você sente calor, está em você. O mesmo acontece com este som [e bate com a madeira na mesa]. É neste mundo de unidade que estamos vivendo. É nesta unidade [e bate novamente com a madeira duas vezes na mesa] que estamos vivendo neste mundo. Sem ‘do lado de dentro / do lado de fora’.
Mas a mente pensa, o ‘eu’ aqui e os outros lá. A língua contém ‘eu, meu, mim, o meu’ [N.T.: Usando a língua inglesa, o Rev. Saikawa utiliza o sujeito, o objeto e duas formas de possessivo, enfatizando o ‘eu’]. E também ‘você, seu, de você’. Então, aquelas pessoas que não duvidam da língua, tem dificuldade de entender a unidade da vida.
A linguagem contém ‘eu, meu, mim, o meu’ e as pessoas dizem: meu corpo. Este é meu corpo. Meu corpo. E se eu expandir a ideia do ‘meu’, eu posso dizer: meu corpo, meu quarto, minha casa, minha cidade, meu país, meu mundo, meu universo. Então todo o universo se torna ‘meu’. Então, se eu reduzir a ideia do ‘meu’, meu corpo, meu cérebro, minha mente e aquilo sentido que eu estou pensando: isto é ‘meu’. Se eu expandir a idéia, todo o universo será ‘meu’ e se eu reduzir a idéia, há somente onda elétrica.
É nesta unidade que estamos vivendo neste mundo. Nós nascemos, neste mundo, nesta unidade. Somente no ponto da unidade é que vivemos neste mundo. Quando eu existo [Saikawa bate novamente com a madeira na mesa], o mundo existe. Quando o mundo existe, eu existo. Mas para aqueles que estão presos à palavra ou à linguagem, é muito difícil de ver o verdadeiro ‘eu’. O verdadeiro ‘eu’ não é uma coisa pequena. E ao mesmo tempo, sem forma.
Retornando à iluminação de Shakyamuni Budha, esta iluminação da unidade é herdada de professor para aluno e o aluno se torna professor e assim este Dharma é continuamente herdado e transmitido por 28 linhagens até Bodhidharma, que é o último patriarca da Índia e o primeiro da China.
Dogen, que era Japonês, era um gênio. É dito que, quando tinha 5 anos de idade, ele já tinha lido os escritos de filosofia chineses. Mesmo tal gênio que estudava Budismo não podia se satisfazer, porque ele tentava resolver o (problema do) ‘eu’ através da linguagem. Então ele teve que ir para a China para buscar o verdadeiro ensinamento. Quando ele estava praticando zazen no zendo, o monge perto dele estava dormindo. Seu professor, Rujing, tirou o chinelo e bateu no ombro do monge que estava dormindo. E disse: não durma!
Por meio daquele som, Dogen se tornou ‘um’ com todo o universo. E ele se levantou e foi à sala do abade, oferecendo incenso, e disse: “meu corpo e minha mente desapareceram’ ou ‘não são mais um peso’ ” [o mestre usa o verbo ‘drop off’, que significa ‘desaparecer’ ou ‘reduzir a quantidade’]. Então ele se tornou ‘um’ com o universo. Então Rujing disse: Está certo se tornar ‘um’ com o universo; mas, antes de sua experiência, você era ‘um’ com todo o universo. Neste sentido, Rujing disse: “Não que a mente e o corpo ‘desapareceram’, mas o corpo e a mente ‘foram retirados’ desde o ‘início menos o princípio’ ” [ou seja, sofreram a ação e não praticaram]. Dogen “diz: corpo e mente ‘desapareceram’”. Rujing disse: “corpo e mente ‘foram retirados’, no sentido oposto. Isto significa: não é se tornar ‘um’ com todo o universo. Se você perceber ou não, desde o princípio menos o início’, ‘um’ com todo o universo”. Dogen disse: “É verdade, é verdade. Sem minha experiência, nós somos ‘um’ com todo o universo”.
Retornando a Shakyamuni Budha, quando ele atingiu a iluminação, ele anunciou quão maravilhoso, quão miraculoso, ele e terra atingirem simultaneamente a iluminação. Isto significa que todo mundo é Budha. Todo mundo é Budha quer dizer que não há delusão, não há iluminação. Delusão e iluminação são ilusão da linguagem, da mesma forma que ‘direita / esquerda’, ‘para cima e para baixo’ são ilusão. Então ele pôde perceber totalmente que somente a atividade mental cria delusão, iluminação, ‘do lado de dentro / do lado de fora’, ‘bem / mal’. Então Shakyamuni Budha se tornou totalmente livre da rede que prendia as pessoas, que significa a linguagem.
Da mesma forma que Shakyamuni Budha, Dogen se tornou livre da linguagem. Então, quando ele retornou ao Japão, seu primeiro anúncio foi semelhante a este: “Eu não pratiquei zazen em muitos dojos. Então quando eu percebi, na casa de Rujing, percebi que o olho está na horizontal e não na vertical. Isto significa, bem aqui e agora (batendo na mesa com a madeira) é o nirvana. E eu voltei com mãos livres [N. T.: vazias], sem nada. Não há Budismo, sem nenhum Budismo.” Porque ele ficou totalmente livre da rede da linguagem. Então, mesmo o Budismo não existe para a iluminação. Esta iluminação nós herdamos de professor (mestre) para aluno (discípulo). Esta percepção nós estamos transmitindo.
Não é muito difícil se eu explicar dessa forma, ‘direita / esquerda’, ‘para cima / para baixo’, ‘bem / mal’, ‘do lado de dentro / do lado de fora’. É ilusão. É uma ferramenta da linguagem. É fácil entender. Mas é difícil, mesmo para estudantes de zen para perceber que o verdadeiro ‘eu’ não está da cabeça aos pés. É muito difícil perceber que a vida e a morte também são uma ilusão da linguagem. Da mesma forma que ‘direita / esquerda’ não existem. Então precisamos praticar. Não compreensão mental. Os filósofos do Budismo transformam as coisas simples em complicadas. Mas o zen as mostra de uma forma direta, bem simples, para realmente ver a idéia de ilusão, de iluminação que estão também no meio mental. Em outras palavras, em todo o universo não existe ilusão, somente na mente humana. Se você realmente perceber isto, você pode salvar a si próprio, através de você mesmo. Então, no Budismo, especialmente no Zen Budismo, o caminho é perceber o verdadeiro ‘eu’ e preservar o ‘eu’.
Quando eu fui a Florianópolis e lá pratiquei zazen com as pessoas, nós conversamos depois no restaurante e eu escutei que a religião no ocidente significa ‘reconectar-se’. Para o mundo japonês, religião é feita de dois caracteres chineses, ‘chiu–kiu’ [N.T.: Ou ‘chiu-kio’. Não sei realmente a forma correta de transcrever os caracteres]. ‘Chiu’ significa realidade. E a realidade significa o verdadeiro ‘eu’. E ‘Kiu’ significa o ensinamento para alcançar o caminho. Então ‘kiu’ não é um ensinamento filosófico. Muito ativo. Forma ativa de alcançar o verdadeiro ‘eu’. Isto é religião para o sentido japonês. Pois o que é a coisa mais importante é se tornar livre de todas as coisas, e desfrutar essa vida. E desfrutar junto com todos.
Então eu vim para este país para apreciar a vida junto com vocês e espalhar este ensinamento.
Muito Obrigado.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
Alguma Pergunta. Se eu puder responder.
Pergunta: Tudo tem um oposto: bem/mal etc. Qual é o oposto de Deus?
Rev. Saikawa: Na linguagem, eu não sei o oposto de Deus, mas qual é o oposto de Deus no ocidente?
Intervenção do Público: Inferno. O diabo. No ocidente, o oposto de Deus é o diabo.
Rev. Saikawa: Então Deus precisa do diabo. Da mesma forma que a ‘direita’ precisa da ‘esquerda’ e o ‘bem’ precisa do ‘mal’. Da mesma forma Deus precisa do diabo. Então esta forma de pensar, no dualismo, tenta resolver os problemas no dualismo. Mas o budismo não tenta resolver o problema de forma dualística.
Pergunta: Eu gostaria que ele falasse um pouco mais sobre qual é o conceito de religião para o oriental.
Rev. Saikawa: ‘chiukio’ é religião em japonês. ‘Chiu’ é a origem, ou base, ou raiz. Muito profundo. É o significado do mundo.
Pergunta: Qual é o conceito de realidade?
Rev. Saikawa: O significado de realidade? É como isto...(Após beber água) Isto é realidade. Isto é bom!!. A mente humana é tão inteligente, que compara com as coisas do passado [Willer: o que está acontecendo no presente. Este é o sentido]. Esta é a delusão. Por exemplo, ontem eu estava tão alegre, tão engraçado e hoje eu estou mais retraído. Comparando com a situação de hoje e de ontem. O passado não existe mais. Mesmo o ‘aqui e agora’ (batendo com a madeira na mesa) nós não podemos pegar. Se eu disser: eu ‘escutei’ este som (batendo novamente com a madeira na mesa), ele já se tornou passado. Então esta inteligência é que cria o dualismo, a delusão do ser humano. Compara. Coloca as coisas do passado inseridas no presente na ‘mesma mesa’. Esta é a delusão. O passado não existe mais. O futuro não existe mais. O ‘aqui e agora’ (batendo com a madeira na mesa). Somente o ‘aqui e agora’ existe. Então...(bebendo água novamente)...Isto é bom!! Esta é a realidade. A mais profunda parte do ensinamento.
O Rev. Saikawa se retira por alguns minutos. Após retornar, continua:
Quando eu uso a palavra ilusão, eu a uso na forma dualística de pensar, que é criada na mente. Mas isto...(bebendo água novamente)...não é ilusão. Então, muitas pessoas vivendo somente com forma dualística de pensar, muitas ilusões no cérebro, se tornam muito presas nisto.
Pergunta: O que eu gostaria de saber, é: se você pensa em limão [N.T.: a fruta], quer dizer que não existe o limão?
Rev. Saikawa: A ilusão criando as condições dos corpos. Mas o sistema do corpo do ser humano. Isto também está além do ‘bem / mal’.
Pergunta: Qual é a definição para religião em japonês?
Rev. Saikawa: A origem, a base. Então, qual é a base? A base não está no lado de fora, porque todos os problemas criados nesta vida vêm daqui, não é? [Willer: o Rev. Saikawa aponta para a sua própria cabeça que simboliza a nossa mente, no sentido de - Mente Apenas - um conceito budista muito usual na filosofia do Mahayana]. Então você tem que verdadeiramente ver seu ‘eu’. É a forma de encontrar a solução para a essência, para o significado deste mundo.
É claro que não estamos falando de problemas sociais. Nós também temos que resolver os problemas sociais, o tanto quanto for possível. Mas nós estamos falando dos problemas que nós temos que liberar, ou temos que nos libertar de todos os problemas e dor.
O ato de solucionar problemas sociais não é útil para quem está morrendo.
O ensinamento, mesmo para aqueles que estão morrendo agora, é importante. É a forma de ensinar o verdadeiro ‘eu’ e se liberar dos seus problemas.
Pergunta (Willer): O meu verdadeiro ‘eu’ é igual ao verdadeiro ‘eu’ do senhor?
Rev. Saikawa: Sim. Seu verdadeiro ‘eu’ é o verdadeiro ‘eu’ de todo mundo, como uma bola de cristal espelhada*. Então, muitas centenas de milhares de bolas de cristal espelhadas. O espelho não tem ‘eu’. Não pensa ou escolhe. Não gosta ou desgosta. Então, o que quer que venha, o espelho reflete, sem pensar ou escolher, sem preferência. Quando se vai, vai. Os olhos são um espelho, para se tornar ‘um’ com estas coisas. Sem o ‘eu’. Os ouvidos são o espelho do som (o Rev. Saikawa bate com a madeira na mesa). Tudo que vem se torna ‘um’. Se este som é preferível ou não (batendo com a madeira novamente), eles [os ouvidos] se tornam ‘um’ com ele. O espelho reflete o som. Quando o cheiro vem, se é preferível ou não, o nariz se torna ‘um’ com o cheiro. Não há o ‘eu’ como espelho, refletindo este cheiro. A língua é o espelho para refletir o gosto. Não há o ‘eu’. Sem preferência. O corpo é este espelho, refletindo ‘quente e frio’, ‘áspero e macio’. Sem o ‘eu’, como um espelho. O que quer que venha, se torna um com ele. Mas as pessoas podem pensar que ‘a mente não é um espelho e que deve existir um ‘eu’ na mente’. Mas a mente é também um espelho. A preferência não é criada pela mente. Por exemplo, eu gosto mais de chá do que café. Quando eu era pequeno, quando eu pela primeira vez bebi um bom chá, então eu comecei a preferir o chá. As pessoas que preferem café, talvez se tornam ‘um’ no momento que o examinam [Willer: cheirá-lo, tocá-lo, vê-lo, bebê-lo]. Talvez tenham um namorado ou namorada e quando experimentam o café, em determinado momento, se tornam apreciadores de café. A preferência não vem da ‘essência’ do ‘eu’. Somente ‘condicionamento’.
Há uma história de um bebê que foi criado por lobos. Ele ou ela não podia se tornar um ser humano como nós. A mente também é condicional. Ela se torna ‘um’ com a causa e efeito.
Se o [presidente] Bush pegar a mesma criança e criá-la na América, esta criança vai se tornar uma profunda crente do cristianismo. A mente também é como um espelho. Não há ‘eu’. Para tudo que vier, ela se torna ‘um’ com isto. Então, dos pés à cabeça, todo o corpo é feito de causa e efeito. Isto é chamado dharma. Então, tudo neste mundo é feito com o dharma. Então, todas as coisas, todas as pessoas, é o corpo do dharma. Isto é chamado de Budha. Não há iluminação, não há delusão. Além da delusão e da iluminação. O entendimento, a percepção, o despertar de Shakyamuni Budha, é chamado ‘iluminação’. Então nesta ‘iluminação’ de Shakyamuni Budha, não há ‘iluminação’e não há ‘delusão’ também. Somente o que é.
Eu diria novamente, todas as coisas neste mundo não possuem ‘iluminação’ ou ‘delusão’. Além da ‘iluminação’ ou da ‘delusão’. Somente a atividade mental dos seres humanos que produzem ‘ilusão’ ou ‘iluminação’.
Se eu me referir sobre o que eu falei de uma forma matemática, o ‘zero’ é igual ao ‘infinito’. Mas é muito difícil de entender através da mente. O ‘zero’ é igual ao ‘infinito’ é a mesma coisa que dizer que o ‘preto’ é igual ao ‘branco’. É muito difícil de entender. Impossível de compreender porque a atividade mental precisa de ‘direita / esquerda’, ‘do lado de dentro / do lado de fora’. A atividade mental domina o dualismo. Então o ‘branco’ é ‘preto’, o ‘zero’ é igual ao ‘infinito’. Impossível de ‘agarrar’ com a atividade mental. Então é necessário perceber através da prática.
Quando eu discursei em Porto Alegre, uma pessoa me disse que ele sabia, que ele compreendia tudo o que eu falei. Então eu perguntei a ele: Você está satisfeito com sua vida? E ele respondeu: Não absolutamente. Então a compreensão verbal, ou dharma, não pode atingir o ponto, porque a atividade mental está no dualismo. Então nós precisamos praticar ‘zazen’, para realmente nos tornarmos um com todas as coisas.
Há muitos pontos sobre Dogen Zenji. E há um ponto que diz: “sem o ‘eu’, e sentado aqui, então a chuva cai sobre mim, sobre mim mesmo”. Quando ele estava sentado em ‘zazen’ e havia a chuva, o ponto estava feito. “Isto ‘sou eu mesmo’ ”. [o Reverendo bate com a madeira na mesa três vezes]. Sem ‘delusão’, sem ‘do lado de dentro / do lado de fora’, sem o ‘eu’ e os outros, totalmente ‘um’ com todo o universo.
* [Willer: Esta imagem é uma referência a uma passagem do sutra avatamsaka, onde foi descrito a imagem da Rede de Indra que continha em seus pontos de união – suas malhas – jóias brilhantes que refletiam tudo que estava a sua volta querendo com isso ensinar de forma poética a natureza da interdependência – a infinita variedade de interações e interseções de todas as coisas, pois cada joia contém todas as outras, um importante dharma de Shakiamuni Buda. De acordo com este dharma por exemplo: sempre que toco uma flor, toco no sol ainda que eu não fique queimado. Quanto toco numa flor, toco a nuvem mesmo sem estar voando pelo céu. Quando toco na flor, toco na minha consciência, na sua consciência, e no grande planeta terra ao mesmo tempo. Isso é possível graças a compreensão da inter-existência. Se você realmente toca uma flor em profundidade, você toca o cosmos inteiro. O cosmos não é um nem muitos, quando você toca um toca muitos e quando você toca muitos toca um]
Pergunta: [N.T.: A pergunta foi feita sobre unidade, sobre o passado, porém não está compreensível]
Rev. Saikawa: No budismo, nós oferecemos coisas, não somente aos ancestrais, mas também aos espíritos deste mundo, porque nós realmente vemos a unidade; passado e presente são somente palavras. Então, quando você oferece coisas aos ancestrais, você se torna ‘um’ com os ancestrais. Sem ‘ilusão’, sem ‘do lado de dentro / do lado de fora’.
Por exemplo, na atividade mental, ‘luz’ e ‘trevas’, ou ‘dia’ e ‘noite’ são totalmente diferentes. Totalmente diferentes, como o ‘preto’ e o ‘branco’. Mas ninguém pode fazer um corte claro entre a ‘luz’ e as ‘trevas’, o ‘dia’ e a ‘noite’. Esta é uma coisa da divisão da mente.
O passado e o presente estão também aqui [o Reverendo bate com a madeira na mesa duas vezes].
Pergunta: [A pergunta, também um pouco incompreensível, é sobre o ‘presente’ e o ‘eu’].
Rev. Saikawa: Em português [o Reverendo fala em português], cada momento é novo.
Pergunta: Seria possível falar sobre o sentimento do medo.
Rev. Saikawa: O medo (temor) é a mesma coisa que a ‘sombra’ na mente. Somente a onda da mente. Então quando os estudantes (praticantes) do ‘zen’ sentam em ‘zazen’, tudo o que vier, deixe vir; tudo o que for, deixe ir. Não tente segurar, afastar para longe. Mesmo o (a) ? [N.T.: não compreendi bem o que foi dito / Willer: sensação de prazer / sensação agradável – acredito ser este o sentido], não tente segurá-lo (a). Mesmo aquela memória, não tente afastá-la. Somente seja isto. Este é o caminho para se alcançar realmente o ‘eu’ (Willer: o sentido é: este é o caminho para se atingir, alcançar o verdadeiro eu)
Terminou? Tudo Bem?
Muito Obrigado
[O Rev. Saikawa faz uma prece e, após, diz:] Que suas vidas prossigam.